Pesquisas apontam que a engrenagem para justificar e racionalizar mortes contra a população negra no Brasil se utiliza de leis e regras jurídicas. A conclusão é do professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro da Comissão Arns, Thiago Amparo, durante um debate sobre racismo, segurança pública e democracia.
Com base em estudos conduzidos pelo Centro de Pesquisa de Justiça Racial e Direito da FGV, o pesquisador questiona a narrativa que opõe um sistema jurídico que respeita o Estado de Direito e a ocorrência da necropolítica, onde o Estado decide quem vive e quem morre. Amparo explica que o sistema jurídico muitas vezes racionaliza a barbárie por meio de regras jurídicas.
Um exemplo citado é a aplicação seletiva da legítima defesa, permitindo abusos de agentes do Estado. O pesquisador lembra o caso do músico Evaldo Rosa, morto por militares do Exército que alegaram legítima defesa após dispararem 257 tiros de fuzil contra o carro da família. O Superior Tribunal Militar (STM) reduziu as condenações dos militares envolvidos.
O ouvidor da polícia de São Paulo, Mauro Caseri, afirmou que as mortes decorrentes de intervenção policial têm um forte componente racial, concentrando-se em jovens negros em determinados territórios. Ele também revelou que 95% dos policiais que cometem homicídios têm seus processos arquivados pelos promotores, e que dos 5% restantes, 95% são absolvidos.
Caseri defende a instalação de câmeras corporais em toda a tropa da Polícia Militar para reduzir as mortes por policiais, tanto de civis quanto de agentes, além da preservação do local das ocorrências para a produção de laudos periciais eficientes.
Amparo aponta o desrespeito a normas de direito processual. Uma pesquisa da FGV analisou indícios de seletividade racial em condenações por tráfico de drogas e apontou que várias provas foram obtidas por meio de invasão irregular a domicílio, justificada como “entrada franqueada”. Argumentos da defesa sobre ilegalidade das provas são frequentemente desconsiderados pelo Judiciário.
A falha na produção das provas também dificulta a responsabilização de agentes do Estado. Uma pesquisa que analisou 800 casos de mortes decorrentes de intervenção policial em São Paulo, majoritariamente entre a população negra, concluiu que 85% dos processos não tiveram exame de pólvora nas vítimas.
Amparo avalia que o uso das regras jurídicas para a manutenção da violência, especialmente contra pessoas negras, faz parte de um projeto político. O professor compara as mortes atuais às da ditadura militar, destacando a continuidade na forma como ocorrem. Uma pesquisa apontou que 40% das vítimas tinham sinais de agressão anterior à morte. Nos processos, há um contraste entre esses indícios e a narrativa de que a vítima era violenta e atirou primeiro, baseada na palavra dos policiais envolvidos. A principal prova de absolvição é justamente o depoimento dos próprios policiais, referendado pelo Ministério Público e pelo juiz.
Fonte: agenciabrasil.ebc.com.br


